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O Nascimento de Uma Nação [Crítica]

Obra clássica do cinema mundial e percussor de diversas técnicas que viriam a se estabelecer como o modelo de montagem, direção e narrativa clássicos do cinema posterior, O Nascimento de uma Nação é um filme extremamente problemático em sua temática e trama. Fruto da mente do notável D.W. Griffith, grande cineasta do seu tempo e um dos principais responsáveis pela criação das bases da linguagem cinematográfica moderna, nos deparamos aqui, no entanto, com um filme extremamente desprezível se desconsiderarmos os aspectos técnicos revolucionários.
Num panorama geral, esse longa é uma adaptação do romance racista “The Clansman” que reconta a história da Guerra Civil Americana que colocou frente a frente o Norte contra o Sul do país. Num primeiro ato somos apresentados aos personagens que guiarão a história e nessa primeira parte há também a retratação histórica dos eventos da guerra. Na trama acompanhamos principalmente uma família da Carolina do Sul que sofre as consequências da derrota para os estados do Norte, principalmente com a morte de dois dos irmãos no campo de batalha, e tem seu modo de vida drasticamente alterado após o conflito. Assim, no decorrer da história vemos o filme narrar de forma épica o surgimento da Ku Klux Klan, retratada como uma grande salvadora dos costumes e morais tradicionais da “raça branca superior” que vinha sendo severamente agredida e subjugada pelos negros e os seus aliados “invasores” do Norte.
Partindo para uma análise crua dos elementos técnicos, são notáveis as inovações que, se nem todas tiveram esse filme como precursor, foram aqui que se estabeleceram como linguagem fílmica padrão pro período. Mesmo com a distância temporal de mais de 100 anos, é possível observar elementos que hoje são banais, mas que pra época foram uma revolução. A montagem paralela, os planos com alternância de closes, a atuação mais natural – diferente da pegada mais teatral de outras produções da época – e um senso de direção apurado que é capaz de transmitir emoções diversas como tensão, raiva, alegria e criar um clima que alterna de pegadas de suspense, drama e heroísmo são os principais pontos que podem ser atribuídos ao filme como elementos que o tornaram um clássico do cinema. Além disso tudo, a condução narrativa que se tornaria a base da narrativa clássica do cinema posterior é mais um elemento a se considerar. Um outro ponto que me chamou a atenção e que eu não encontrei muito a respeito nos textos que contam sobre a obra são os diferentes filtros nas lentes que servem para diferenciar os cenários quanto a algum destaque emotivo ou simplesmente pra indicar a entrada num período noturno. Foram ideias criativas e funcionais para driblar os desfalques técnicos numa época em que era extremamente complicado filmar a noite, por exemplo.
Dadas as devidas ressalvas as questões técnicas, tenho que afirmar que até o fim da primeira parte do longa eu até pensei em dar alguns pontinhos por tamanha “inovatividade” do filme, mas como não sabia o que esperar, já que conhecia só por alto a respeito da obra, tive todo esse apreço dissolvido com uma segunda parte extremamente odiosa. É verdade que a primeira parte já apresentava uma boa dose de elementos problemáticos, mas que não eram o foco central da obra que parecia presar pelo retrato da história americana pela perspectiva dos estados confederados do sul e uma narrativa de drama familiar que colocava a guerra como a vilã da história e algo inexplicável e irracional. Porém, isso dura em torno de um terço do filme que tem lá suas três horas e o que vêm na sequência expõe o real ponto central da trama.
Com uma cartela de título no início da segunda parte que alerta que aquela retratação não tem nada a ver com as pessoas e povos da época contemporânea ao filme, não é possível enxergar qualquer tipo de isenção da trama em relação aos ideais mais radicais e extremistas do movimento supremacista evidenciado que o filme tenta vender com esse “aviso” inicial. A história logo põe os negros como os grandes vilões que invadiram e subjugaram a população branca do sul americano, que se viu como minoria social submissa aos preceitos das autoritárias lideranças negras, não tendo outra opção a não ser se unir num grupo de libertação dos ideais supremacistas que, de forma heroica – como o filme retrata muito bem – foi responsável por salvar a indefesa ex-opressora e escravista sociedade conservadora branca da região.
Só de expor, utilizando uma abordagem de épico histórico, a KKK como um movimento heroico não há como encontrar algo a se exaltar de fato no final dessa experiência, pra mim. É extremamente ambíguo perceber a forma como o filme tenta nos convencer e reinterpretar a história elevando os oprimidos e nunca compensados escravos e seus descendentes ao posto de vilões hediondos e perversos, enquanto os escravocratas e condenáveis senhores brancos do sul, que travaram uma guerra civil para manter o sistema em seus territórios, são expostos como vítimas indefesas das políticas de “igualdade racial”, que nem sequer foram verdadeiramente aplicadas na época. Prova disso é a história e a observação da situação contemporânea dos afro-americanos que sofrem até hoje os resquícios dessa sociedade racista que perdura nos Estados Unidos. Paralelos podem ser, evidentemente, traçados com diversos outros lugares do mundo. Se até hoje a tão sonhada igualdade está distante de ser alcançada na prática, é até risível a forma como o filme expõe sua “grande problemática”. Além da sua temática e miserável reinvenção da realidade pela mente dos mesquinhos supremacistas americanos a obra não é racista apenas em seu conteúdo, mas também na sua estética com a utilização de “blackfaces” para representar os negros em cena, uma prática extremamente ofensiva.
Com isso, não sou capaz de enxergar ou relevar as noções técnicas em detrimento do teor odioso da obra. Mesmo assim, com as devidas ressalvas, é possível sim utilizar esse filme como um exercício cinematográfico em vários sentidos, seja para observar a justificativa deste ser um clássico do cinema, seja para entender como um viés perverso pode ser elevado a veracidade simulada numa obra que poderá ser comparada as produções nazistas de duas décadas mais tarde na Alemanha. Se, com esse texto, eu posso ter me contradito em algo, é porque esse filme foi uma verdadeira experiência desgastante e desagradável pra mim e se, ao menos, serviu para expor como o cinema é complexo e irresoluto, me considero satisfeito.

Nota do autor:

Avaliação: 0.5 de 5.

Gabriel Santana

Indicação de leitura: Crítica: O Nascimento de Uma Nação – Pablo Villaça ↗

Título OriginalThe Birth of a Nation
Lançamento1915
País de OrigemEUA
DistribuidoraDavid W. Griffith Corp.
Duração3h15m
DireçãoD.W. Griffith

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