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Uma História de Amor e Fúria [Crítica]

“Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”. Essa é a principal frase que abre o filme e que permeia toda a sua narrativa. Ela não tem a ver simplesmente com o enredo do longa, mas se aplica a nossa realidade e principalmente num contexto tão complicado como o brasileiro. A história e a educação são elementos imprescindíveis para uma sociedade mais humana e fraterna e, com filmes como esse, temos, além de uma experiência artística magnífica, uma aula importante a respeito dos nossos próprios passados. Esse filme conseguiu conquistar minha identificação por diversos elementos diferentes e eu não posso continuar esse texto sem, logo de cara, indicá-lo para quem ainda não assistiu a obra.
Essa é uma verdadeira viagem pela história do Brasil. De início, conhecemos Abeguar, nosso protagonista, que viajará conosco por toda essa jornada. Estamos num contexto de invasão portuguesa e Abeguar é um indígena que recebe a missão do deus Munhã de liderar sua “tribo” na luta contra os poderes do mal do maligno Anhangá. Se essa história assemelha-se à uma fantasia e que parece não se relacionar tão claramente com nossa realidade, à primeira vista, logo percebemos que a trama está muito bem correlacionada com a história desse nosso país. Seja no primeiro contexto explorado, enquanto acompanhamos a invasão portuguesa e os tramites posteriores que resultaram na perseguição dos povos indígenas, seja nas outras épocas futuras abordadas posteriormente, a “tribo” que Abeguar lidera está sempre lutando contra as injustiças sociais que se mostram presentes e incrustradas no cerne da sociedade brasileira ao longo dos séculos. No Brasil Império, Na Ditadura de 64 ou até mesmo em um futuro distante em 2096, temos representações marcantes de temáticas e discussões necessárias e que são exploradas de forma hábil pelo roteiro, mesmo que merecessem um desenvolvimento maior.
Quando eu menciono que o desenvolvimento dos “episódios históricos” deveria ser maior eu não estou criticando a obra, mas lamentando a sua curta duração, pois, para mim, esse filme poderia ter horas sem problema nenhum. Poderiam ser abordados outros capítulos da nossa história sem nenhum prejuízo para a narrativa. Em relação a isso, uma coisa que me chama a atenção com relação a filmes nacionais, e com esse aqui não foi diferente, é uma característica que fica exposta logo nos créditos iniciais. Observando a sequência de créditos, logo antes do filme começar, percebemos a quantidade enorme de empresas e órgãos públicos que estão contribuindo para a realização e distribuição daquela obra. São diversas empresas, repartições públicas e leis de auxílio que tornam possível a existência do filme aqui no Brasil, demonstrando que o cinema nacional ainda precisa de muito para se desenvolver plenamente. E ver que toda essa união de esforços gerou uma obra com apenas pouco mais de 1 hora e 10 minutos me decepciona um pouco. Nem de longe pela qualidade da obra, mas pela dificuldade de produzir cinema no Brasil. Não posso afirmar com certeza se a duração foi uma estipulação narrativa, mas na minha visão não faltava conteúdo, criatividade e nem capacidade por parte dos realizadores para estender ainda mais esse filme.
Tirando do caminho esse aspecto da produção do filme, partimos então para a obra em si. Pra começar, me surpreendi que esse é um filme de animação. Como sempre gosto de destacar, eu geralmente entro nos filmes sem saber de nada ou quase nada a respeito deles. Dessa vez eu não sabia nem que se tratava de um filme de animação, apenas tinha recebido a indicação e tinha me lembrado dele recentemente quando vi que uma amiga o assistiu. E que grata surpresa apreciar uma obra nacional de animação. Eu sou muito fã dessa vertente do cinema e observar aqui uma animação linda como essa me deixou muito satisfeito. É perceptível a atenção aos detalhes dos cenários e da criação da ambientação e personagens durante todo o filme. Se a produção não tem um orçamento que arque com os custos de animar expressões faciais e corporais tão realísticas, no estilo utilizado aqui isso se mostra bem insignificante, no final das contas. A nossa imersão é garantida, de fato, por uma narrativa segura e bem cativante e por um trabalho de voz incrível, principalmente por parte dos atores principais: Selton Mello e Camila Pitanga. Ainda nos aspectos técnicos, tenho que exaltar a direção de som que também é muito marcante.
O enredo nos convida a revisitar o nosso passado e nos apresenta – ou relembra – as lutas e processos conturbados que alicerçaram o Brasil como ele é hoje. Nossos problemas sociais, nossa visão da história e de seus personagens e a maneira como relembramos isso tudo são muito bem abordados nessa obra. Tudo isso envolto por uma trama – como o próprio título já traz – de amor e fúria. Na minha visão, isso aqui deveria estar no currículo da disciplina de história para todos os alunos do ensino médio brasileiro pois, além de servir como uma espécie de reconstituição histórica, ainda é uma maneira perspicaz de criar uma ótima impressão dos mais jovens sobre o nosso cinema nacional, apresentando essa arte de maneira útil e cativante. Não recomendaria para alunos mais novos porque o filme não se omite a nos mostrar o quanto a história pode ser violenta e chocante, em muitas situações, além de serem perturbadoras algumas ocasiões reais abordadas no longa que o nosso país já vivenciou. De todo modo, ressalto que se esse filme tivesse uma duração maior e mais episódios da nossa história ele seria uma obra ainda mais completa e útil educacionalmente.
Para finalizar minha análise, algo que eu me identifiquei bastante foi como o longa utiliza nossa mitologia de maneira muito respeitosa e valorizando nossa história e ancestralidade. A mitologia e a cultura dos povos tradicionais brasileiros são englobadas na obra de forma cativante e muito inteligente, criando um mundo fantástico tão real e convidativo desde o início do longa. Assim é fácil imergir no universo do filme. Isso tudo me interessou bastante pois, para mim, é assim que nós deveríamos criar e desenvolver a sétima arte no país. Não importam tanto os moldes ou os formatos utilizados, se é comercial ou artístico. O que me parece mais importante é saber utilizar de maneira perspicaz a nossa cultura. Cultura essa que é tão complexa e grandiosa que poderíamos ter conteúdo para quantas sagas de “Vingadores” fossem propostas. Assim, reconheço um grande mérito dos realizadores desse filme por saberem muito bem adaptar uma parte da nossa vasta cultura para as telas, deixando, de certa forma, um convite a explorarmos o quanto mais ainda temos para descobrir sobre nós mesmos como povo e nação.
A meu ver esse é um filme obrigatório e muito importante para o cinema nacional moderno. Traz uma visão excelente não só sobre nós hoje em dia, mas também sobre o futuro, trazendo como base para sua tese o nosso passado. Fico feliz de apreciar essa obra de maneira completamente pura e genuína, sem nenhuma outra influência ou preconceito anterior. Uma maravilhosa surpresa que só tem de grande defeito ser muito curta para tamanha qualidade. Enfim, é isso que eu quero do nosso cinema.

Nota do autor:

Avaliação: 4.5 de 5.

Gabriel Santana

Título OriginalUma História de Amor e Fúria
Lançamento2013
País de OrigemBrasil/EUA
DistribuidoraEuropa Filmes
Duração1h14m
DireçãoLuiz Bolognesi, Jean Cullen De Moura, Marcelo Fernandes De Moura

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